No corpo feminino, esse retiro
Carlos Drummond de Andrade
No corpo feminino, esse retiro
— a doce bunda — é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.
Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro
a mão em concha — a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.
No mármore de tua bunda
Carlos Drummond de Andrade
No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
No meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra ...
No momento em que nos comprometemos, a providência divina também se põe em movimento. Todo um fluir de acontecimentos surge ao nosso favor. Como resultado da atitude, seguem todas as formas imprevistas de coincidências, encontros e ajuda, que nenhum ser humano jamais poderia ter sonhado encontrar. Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar, você pode começar.
Goethe
A coragem contém em si mesma, o poder, o gênio e a magia.”
No pequeno museu sentimental
Carlos Drummond de Andrade
No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.
Apalpo, acaricio a flora negra,
a negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.
Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
Vou beijando a memória desses beijos.
No princípio, era o Homem.
Valter da Rosa Borges
E ele fez o mundo
à sua imagem e semelhança
com números e palavras.
E este foi o primeiro
e último dia da Criação,
porque os números e as palavras
fizeram tudo o mais.
Noite
Fernando Pessoa
Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
Carlos Drummond de Andrade
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
NOTA SOCIAL
Carlos Drummond De Andrade
O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.
O antigo amor, porém, nunca fenece
Carlos Drummond de Andrade
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
O apego é a maior escravidão.
Valter da Rosa Borges
Aquele que se apega, renunciou ao direito de liberdade.
O Chão é a cama
Carlos Drummond de Andrade
O Chão é a cama para o amor urgente,
O amor não espera ir para a cama.
Sobre o tapete no duro piso,
a gente compõe de corpo a corpo a última trama.
E para repousar do amor, vamos para a cama!
O corpo nada mais é
Valter da Rosa Borges
do que pó organizado.
O homem é pó pensante.
Sai do pó e volta ao pó.
Aonde vai o pensamento
se a alma não for o pó?
O escritor é um médium:
Valter da Rosa Borges
vive vidas não vividas,
personagens que não foi,
memórias alienígenas,
lugares que nunca andou,
dores e amores vários,
o que nunca sofreu ou amou,
tudo escorrendo do braço
para a mão que psicografa
o que jamais escreveu
ou que sentiu ou pensou.
Criação ou adoção
o que escreveu como seu,
filho que nunca gerou?
O espaço do passado
Valter da Rosa Borges
cresce a cada instante
pelos aluviões do presente;
Mas o espaço do presente
é sempre o mesmo.
O espírito é um sonho
Valter da Rosa Borges
que, um dia, se fez carne
e pensou que era carne,
até voltar a ser sonho.
O futuro é o próximo ato,
Valter da Rosa Borges
o próximo passo,
o próximo fato.
Ele existe enquanto não existe
e morre logo que se torna hoje.
O futuro tem muitos nomes.
Victor Hugo
Para os fracos é o inalcansável.
para os temerosos, o desconhecido.
Para os valentes é a oportunidade.
O homem gostaria de ser peixe ou pássaro, a serpente gostaria de ter asas, o cão é um leão confuso...
Pablo Neruda
Mas o gato quer ser somente gato,
e todo gato é um puro gato
desde o bigode ao rabo
O homem inventou a igualdade.
Valter da Rosa Borges
Na natureza tudo é desigual.
A perfeição é invenção geométrica.
A ordem do mundo é o caos mutante.
A criação é sempre nova:
só acontece uma vez.
Se você aprender a ver
nunca mais dirá que o mundo
é o mesmo o tempo todo.
O homem pensa.
Victor Hugo
A mulher sonha.
Pensar é ter cérebro.
Sonhar é ter na fronte uma auréola.
O homem é um oceano.
A mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que embeleza.
O lago tem a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa.
A mulher, o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço.
Cantar é conquistar a alma.
O homem tem um farol: a consciência.
A mulher tem uma estrela: a esperança.
O farol guia.
A esperança salva.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra.
A mulher, onde começa o céu!!!
Victor Hugo
O hóspede não se apega
Valter da Rosa Borges
às coisas e aos lugares.
Nem sequer às pessoas.
Mas é difícil ser hóspede.
O infinito nos priva
Valter da Rosa Borges
da emoção de chegar.
Somente o que é finito
tem início, meio e fim.
O infinito é caminho,
que não termina ou começa
em qualquer tempo e lugar.
O instante sem fim
Valter da Rosa Borges
é aquela experiência
que enquanto dura parece
ser o êxtase da eternidade.